23 setembro, 2006

A LENDA DO LOBISOMEM

O Lobisomem

«Já lá vão muitos anos…
Sabe-se lá… talvez séculos!...
Pelas ruas de Segura, a desoras, nas intermináveis noites de Inverno, surgia estranho ser em desordenado tropel que a todos amedrontava.
À sua aproximação, mesmo os mais animosos sentia levantar os cabelos!...
Sol-posto já ninguém saia à rua.
E o alegre povo raiano sofria e passava um verdadeiro castigo.
-
Um dia, um mocetão, valente e destemido, tomou a resolução de averiguar a causa tão extraordinário fenómeno.
E colocou-se entre o postigo e a porta da casa de seus pais.
Chovia a potes.
O vento era medonho com os seus estridentes assobios.
Parecia impelido pelo demo.
E o mocetão, valente, firme em seu posto, esperou uns momentos, o bastante para se enregelar.
O tropel não se fez esperar e uma sombra negra surgiu.
As pedras da calçada chispavam lume. A sombra horrenda resvalava pelas valetas, escouceava para um e outro lado, fazendo que as próprias ombreiras dos portados deitassem lume.
E o rapaz, agora um tanto assustado, colocou-se bem à porta. Parecia petrificado!
O estranho fenómeno avançava cada vez mais em correria vertiginosa, e o rapaz, embora, como se disse, um tanto amedrontado, pôde verificar que se tratava de um monstro horrendo metade cavalo metade homem, ferrado de pés e mãos!
Estava quase a arrepender-se da sua temeridade!...
Mas o monstro seguindo o seu caminho, desapareceu…
-
Depois de se interrogar a si próprio, várias vezes o que fazer, procurou um dos homens mais idosos da aldeia, e expôs-lhe o que vira!...
E o bom velho respondeu-lhe: -- O que tu viste meu amigo, é um encanto que só se desfará se alguém tiver coragem de, escondido atrás de uma das cruzes das ruas da nossa aldeia e munido de uma vara com aguilhão, picar o monstro por forma que o faça lançar de si muito sangue.
-
Pois deixe o caso comigo. Se aí está o remédio…picá-lo-ei eu mesmo respondeu o rapaz.
- Pois então, toma cuidado, que, se o não picares bem, grande perigo corres!...
O rapaz, forte e valente, como se disse, disposto a dar mais uma prova do seu valor e livrar a povoação de tão grande desassossego, logo que anoiteceu, recolhidos todos os moradores e fechadas todas as portas, foi colocar-se, por entre vendaval formidável, atrás de uma das cruzes, tendo bem apertada na mão direita, forte vara de grande aguilhão.
-
Começou a ouvir-se o tropel, pondo-se em breve à vista a infernal figura.
O rapaz tremia!
Perdera quase a noção de si mesmo!
Fugir?
Bem se lembrava ele do conselho do velho:
- Toma cuidado, que se o não picares bem, grande perigo corres!...
-
Recobrou ânimo.
Estava ali para vencer ou morrer!
Já agora levaria ao fim a sua empresa.
Esperou! O monstro avançava a todo o galope.
E passou, e, na passagem, o heróico mocetão cravo-lhe bem a grande aguilhada!
E o monstro, como por encanto, desapareceu.
O valente moço respirou, mas tremia ainda.
O seu coração batia desordenadamente.
Foi-se deitar, mas não podia conciliar o sono.
Que iria suceder?
-
Passaram algumas noites e o tropel não mais se ouviu. Que estranho facto se terá passado? – Inquiria a povoação.
O rapaz (ninguém sabe até aonde vai o poder de encantos e bruxarias) contara o seu feito, muito em segredo, só aos mais íntimos.
Passaram dias e passaram noites, e a povoação, de segredo em segredo, veio a saber o que se passara.
E perguntava:
- Mas que figura seria essa, horrenda e disforme?
- Seria um lobisomem?
- E quem seria o infeliz?
Passaram ainda mais alguns dias, até que um dos mais considerados moradores de Segura, que havia desaparecido do convívio da povoação, apareceu sem um dos olhos.
Se ele era são e escorreito, se não constara na povoação qualquer desastre, como e onde teria perdido ele a vista? – Perguntavam todos os moradores de Segura.
-
Fora, evidentemente, o rapaz da aguilhada!...
E o povo passou, desde logo, a afirmar como verdade incontestável que o monstro, semi-homem semi-cavalo, que tanto o incomodara, era, por artes do demo ou mercê de encanto, o bom homem que aparecera, sem saber como, sem um dos seus olhos.»

In:” Subsídios para a Monografia de Segura” de Mário Marques de Andrade

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